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Mostrando postagens de fevereiro, 2015

Cinzas de Carnaval

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Diz a lenda que o Brasil começa depois do Carnaval. É como se o brasileiro tivesse uma existência esquizofrênica perene: o prazer dissociado da construção diária da vida. Essa máxima poderia ser diferente, já que milhões de brasileiros laboram incessante e diariamente e deveriam ter qualidade de vida, condições de trabalho, subsistência, lazer e prazer sadios e festivos, ao longo de todo ano, não apenas na catarse coletiva de quatro ou cinco dias, financiada por interesses escusos da indústria de bebidas e outras, e dos bastidores contra-vencidos das escolas de samba. Apesar disso, o Brasil emerge do Carnaval. Coincidentemente, nesses dias de cinzas, fui motivada a discutir um tema que rola na mídia, sobre o recém-lançado: “ Cinquenta tons de cinza ”, filme baseado no primeiro livro de uma trilogia best-seller do mercado editorial. Não li os livros. Não posso falar sobre eles, mas fiquei sem graça de pelo menos não ver o filme e poder opinar a respeito, ainda mais com o tempo liv

Memórias Póstumas de Noel Rosa

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Este é o título do livro de Luciana Sandroni dirigido ao público juvenil, editado pela Companhia das Letrinhas em 2014. Traz ilustrações de Gustavo Duarte, lembrando as autocaricaturas de Noel Rosa. Além de toda riqueza de texto e imagens, apresenta ao final uma série de partituras de Maria Clara Barbosa, acompanhada das letras do sambista carioca. O subtítulo, “Uma longa conversa entre Noel e São Pedro num botequim lá do céu”, mostra o tom de carnavalização da obra, em citação ao samba noelino “Festa no Céu”, reforçado pela referência explícita, no título, ao livro “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis. Assim como no livro do Bruxo do Cosme Velho, o texto de Sandroni traz um prólogo explicativo da autora sobre as memórias que virão adiante, apresentando o narrador, o boêmio Noel, e seu interlocutor celeste. E no som de toda a narrativa, pode-se perceber que também foi escrita com certa “pena de galhofa e tinta de melancolia”, como em Brás Cubas. Elemento comum

O sensu de todas as coisas

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Lembro-me de quando os dezenove poemas iniciais de meu livro “Amar o Mar” ficaram prontos. Aquela produção exigiu de mim mergulhar em inúmeras vivências junto aos mares da minha cidade. Todo o universo de percepções e sensações próprias de quem convive com as realidades litorâneas afloraram ali. Recordo-me também de que pedi a algumas pessoas para lerem os originais. Minha tentativa era de me comunicar com o público infanto-juvenil. Então busquei alguns escritores e leitores reconhecidos na área para avaliarem meus textos. Fiquei surpresa com a reação de uma poeta famosa no meio da produção para crianças e jovens, diga-se de passagem, reação única. Ela me disse que meus versos traziam uma sensualidade não própria desse público em potencial. Fiquei incomodada com aquela observação, sentindo-me violando a consciência dos “baixinhos”. Mas com o passar do tempo, percebi certo preconceito presente naquela afirmativa. Continuei buscando a publicação, que aconteceu em 2005, pela Ed

Sobre o camaleão, sobre o muro

“ Camaleões são pertencidos pelas cores; eles se aperfeiçoam nas paisagens ” (Manoel de Barros). Com esse mote, Marco Berger epigrafa seu livro de poemas, Um camaleão sobre o muro , publicado em 2003, pela Editora Soco. Nossa, como estou atrasada! Minha sorte é que bons livros sobrevivem ao tempo. O poeta vai se travestindo camaleonicamente em lirismo desmedido por entre as paisagens da cidade, humana como nós, cheia de artifícios e nuances tantas, ao rés do chão, do muro nosso de cada dia ( ...tão antigo e cimentado ).  Na primeira parte do livro, é sobre esse muro que ele transita, na Fenomenologia da Verossimilhança ( Corrompido pela minha humanidade/Vivo brincando de modelar o mundo/Eu, que falo de mim aparteando a todo instante... ). No segundo ato dos versos, o camaleão ainda passeia poeticamente sobre o muro, na “ Ambivalência da palavra ”, “ Escreve torto em linhas retas/Pra destino ignorado/Sua dor é um porto abandonado ”.  É um “ Andarilho ”, “ ...dos que garimpam/ri

Sorrir

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"Pode parecer estranho, mas a inglesa Tess Christian, de 50 anos, afirma que não sorri desde que era pré-adolescente. O motivo? De acordo com o Daily Mail, a mulher diz que há quase 40 anos educou seus músculos para não sorrir por não querer ter rugas e outras marcas no rosto". Assim começa um artigo que li hoje. Fiquei pensando no que as pessoas permitem que lhes façam, em uma sociedade cujos valores atuam sobre muitos como fatores desconectantes de coisas simples  que são tão poderosamente humanas como sorrir. Já viram o que um sorriso é capaz de fazer? Um sorriso exercita os músculos da face, provoca outros sorrisos, desmonta atitudes agressivas, faz bem ao coração de quem sorri e de quem acolhe um sorriso e deve ter outros tantos benefícios que não me ocorre agora. Mas em nome de se preservar a face das rugas, como se isso pudesse ser realidade permanente, e para aparentar uma juventude inexistente, deixa-se de sorrir. Porque não há juventude de fato quando não se pode

Alice no Espelho

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Um dos ganhadores do Prêmio Jabuti 2006/2007, na categoria Livro Juvenil, foi o livro Alice no Espelho , de Laura Bergallo, Edições SM, com ilustrações de Edith Derdyk. Texto e ilustrações fazem alusões claras às obras de Lewis Carrol, Alice no País das Maravilhas e Alice através do espelho , a começar da epígrafe do primeiro capítulo, que introduz a protagonista, também Alice: Criança da fronte pura e límpida/ E olhos sonhadores de pasmo!... Alice vai se mostrando aos poucos: uma adolescente em processo de sofrimento por transtornos de anorexia e bulimia, frutos de uma sociedade governada pela ditadura da estética. A temática da mulher presa ao espelho, como figura do culto ao corpo, aparece também na personagem da mãe, Elisa, cujo nome é um anagrama quase perfeito do nome da filha, que, sob muitos aspectos, a espelha. Ao longo do livro, há inúmeras referências à obra de Carrol, na própria memória de Alice, cujo nome foi escolhido pelo pai, por causa do clássico infantil

De Jesus, biografias e mulheres.

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Releio o livro bíblico de Mateus. O autor biografa a vida de Jesus de Nazaré, com quem conviveu por cerca de três anos, caminhando pelas terras da Palestina. Busca mostrar Jesus como alguém de quem o povo judeu já tinha ouvido falar ao longo de séculos, e faz questão de atestar que nele se cumpria a grande expectativa de seus conterrâneos sobre o Messias. O livro começa com uma genealogia de Jesus, ressaltando sua linhagem de ascendência, a partir do patriarca Abraão e, posteriormente, do Rei Davi, marcos históricos fundamentais para aquele povo. Mateus, porém, faz o que provavelmente os biógrafos de sua época não fariam. Inclui nessa listagem nomes de mulheres. Observei algumas traduções. Esses nomes aparecem dentro de expressões adjetivo-explicativas, às vezes entre vírgulas, outras, entre parênteses. Mais curioso ainda, essas personagens eram dignas de serem ignoradas naquele tempo por serem mulheres e por suas biografias não socialmente recomendáveis: ou eram estrangeira