Tito

Tito é meu sobrinho. É autista, por isso, muito especial. Senti-me desafiada a levá-lo a um passeio matinal de domingo, no calçadão da praia. Sol forte, muita gente, movimento antecipado do verão.

Como ele ainda não fala, por força da síndrome mesmo, e nem sempre podemos estar juntos, a comunicação não é muito simples.

Pedi algumas instruções à secretária da casa, para minimizar um pouco o meu medo de que o passeio não acabasse bem. Ela me respondeu com a simplicidade e sabedoria dos que enxergam a vida por vias da experiência: “É só prestar atenção. Ele vai mostrar tudo quando ele querer.”

A troca da conjugação do verbo no futuro do subjuntivo para o infinitivo pessoal ecoou nos meus ouvidos, não só pelo fenômeno da regularização da variação sociolinguística no uso de verbos considerados ‘irregulares’ como o querer, o que não vem absolutamente ao caso, mas por me dar a chave de um encontro com meu sobrinho.

Fiz isso: deixei-me conduzir pelo Tito. E fui repetindo a máxima comigo: “Ele vai mostrar quando querer”.

Levei-o no carrinho que ele usa para distâncias maiores, devidamente munida de muita expectativa.

Chegamos ao calçadão, e ele logo demonstrou alguma impaciência. Por ensaio e erro, associei à necessidade de sair do carrinho. Funcionou. Sentindo-se livre, ele foi guiando nossos passos.

Por um tempo, talvez pra fugir do sol, e isso pode ser apenas uma projeção minha, ele foi andando ao meu lado, tentando me acompanhar, seguindo minha sombra, o que alterava significativamente a dinâmica a que me propus. Então, incomodada, diminuí o passo, tentando deixar que o ritmo fosse dele. Ele se inquietou. Percebi, assim, que ele não me seguia, mas brincava com a minha sombra.

Ele quis atravessar a rua para alcançar uma pracinha. Eu o impedi, com medo do movimento dos carros. Sua impaciência voltou a crescer. Peguei-o no colo, e ele aquietou. Muito por acaso, entendi que ele queria atravessar para a praça e aceitava de bom grado, com cautela diante dos carros, que eu o ajudasse.

Na praça, começou a empurrar o carrinho fazendo diferentes percursos, e eu atrás do seu querer. Quando chegou a um degrau, aonde ele não sabia como fazer o carrinho subir, ele parou, e eu também, mas se impacientou. Fiquei dizendo: “Empurra o carrinho, Tito, empurra o carrinho”. O quadro não se alterou. Então comecei a falar pra que ele me falasse o que queria, como se ele já não estivesse fazendo. Até que percebi que ele desejava que eu o ajudasse. Eu o ajudei. Aconteceu de novo, e eu prontamente obedeci. Na terceira vez, ele parou, olhou pra mim, e eu sorri fazendo o que ele queria. Por fim, ele mesmo aprendeu o movimento de fazer o carrinho subir o degrau e já dispensava a minha presença.

Não precisei chamá-lo pra ir embora, ele mesmo deu um jeito de me mostrar. Voltamos pra casa e lá me deu um abraço mais que gostoso, autodoado, como de agradecimento e encontro. Eu o agradeci apertando muito, contente por aprender com ele a caminhar junto.

Quando Tito nasceu, todas as visitas ganharam um marcador de livro que citava um trecho bíblico: “...não tivemos nenhum descanso, mas fomos atribulados de toda forma: conflitos externos, temores internos. Deus porém, que consola os abatidos, consolou-nos com a chegada de Tito.” (II Cor.7:5 e 6).

É verdade. Tito, de forma muito especial, me consola quanto aos desencontros da vida.


 (Escrevi essa crônica em 2011. Tito tinha, então cinco anos).

 

Comentários

  1. Achei muita vida no teu texto, vida prática. Vou repassar para outras pessoas, ajuda a entender e lidar melhor com nossas limitações, não com a do outro, mas com as nossas!

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  2. Que linda experiência. Vc conseguiu projeta-la dentro de mim. Acabei de aprender com o Tito. 😘

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